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           Não é de hoje que o tema racismo ecoa com toda tenacidade em discussões sociais e textos em forma de “empoderamento” no Facebook. Apesar de muita gente, leia-se uma quantidade significativa de caucasianos, achar que o racismo acabou no dia da abolição e virou conto nas páginas dos livros de história. Há também negros que confessam que nunca sofreram, ou ao menos não perceberam situações na quais se sentissem diminuídos pela melanina “excessiva” na pele. Jaqueline Fernandes, 45 anos, empresária e dona de uma rede de lojas de vestidos de noiva, contou que nunca antes tinha sofrido ou notado casos assim, até viajar para o exterior.

            Foi em setembro de 2013 que Jaqueline realizou um sonho junto com seu namorado, uma viagem para Europa, com direito a várias passagens por diferentes países. Caio Gomes, que trabalha como analista de finanças no IBGE, é branco e descendente de português, só um pequeno detalhe para os fatos que viriam a seguir. A primeira parada deles foi em Portugal, especificamente Porto, onde Caio tem vários parentes e por uma noção de logística iniciariam ali a jornada deles pelo continente.

            Logo na primeira semana no Porto, Jaqueline fora abordada dentro de um mercado local e foi solicitada que sua bolsa fosse revistada. O critério foi que o procedimento era padrão do estabelecimento e eles faziam esse tipo de inspeção com pessoas “aleatórias”. Bolsa inspecionada, muitas perguntas feitas, constrangimentos a mil por hora. Bingo! Com o passaporte na mão, um dos seguranças ficou sabendo da nacionalidade de Jaqueline e o tratamento foi ainda mais rígido. Perguntas como “o que fora fazer ali”, “com quem estava” e “para onde iria”, tudo isso dentro de um Mercado. Certamente Jaqueline se alterou, ligou para Caio e saiu de lá de mãos vazias, sem comprar o que lhe era de desejo. Fora a primeira vez que experimentou o racismo na pele. Mal sabia que infelizmente essa não seria a última vez, só nessa viagem.

            Depois de mais alguns dias foram para Espanha, França e depois Itália. Mas foi no trem de Offenbach para Frankfurt com o Caio que uma senhora de aparentemente 80 anos reproduziu o discurso racista. Começou a murmurar que era ‘um absurdo o que esses homens alemães estavam fazendo hoje em dia, levando suas prostitutas negras para a Europa, e que era melhor na época do nazismo, pois “negros não deviam nem pisar no país”. Sim, ela estava se referindo a Jaqueline, por conta das suas características físicas: lábios carnudos, cabelos cacheados, pele que bronzeia fácil. “Meu namorado e eu notamos a hostilidade dessa senhora, mas decidimos ignorar o pensamento dela pequeno e continuamos nosso caminho sem sermos perturbados”.

            Subiram mais um pouco o continente europeu e foram para a Inglaterra. Lá conheceram um grupo de brasileiros no hostel em que estavam hospedados e combinaram de ir em uma “night” londrina. Chegaram à discoteca, pagaram a entrada e foram para a pista de dança. Foi quando Jaqueline percebeu que um grupo de mulheres, no total de cinco, aparentemente com 40 e poucos anos, começou a dançar perto deles – de um jeito estranho, muito estranho mesmo, como se estivessem com bolas de boliche nas mãos – relata rindo ao lembrar da cena. Num exato momento da dança, Matilde, uma das brasileiras recém-conhecida, percebeu que as mulheres não estavam dançando e sim caçoando deles. Jaqueline resolveu ignorar, mas é claro que o episódio não lhe saiu da cabeça. Mais tarde naquela noite o grupo recebeu um bilhete escrito “Come back to ur country, U guys don’t belong here. ”  - Traduzindo: “Voltem para o país de vocês, vocês não são bem-vindos aqui. ” O engraçado que o bilhete só fora entregue às duas pessoas negras do grupo, eu e outro rapaz- contou Jaqueline com o olhar longe para fora da vitrine da loja onde trabalha.

            Desde a viagem, Jaqueline se engajou mais sobre o assunto e hoje não só dá atenção como ajuda pessoas que passam pelo mesmo problema, seja aqui ou lá fora. “No meu caso, na época, optei por seguir a filosofia de que “o que não nos mata nos torna mais fortes”. Mas hoje eu faria diferente e denunciaria tanto os guardas de Portugal quanto o grupo de Londres”. Racismo é crime e punível de prisão. A organização European Network Against Racism (ENAR) orienta como proceder em casos como o de Jaqueline e também informa a lista de entidades que podem ser contatadas na Europa, além da polícia, de acordo com o país onde ocorrer a agressão. Já no Brasil, a Polícia Federal incentiva a denúncia de crimes intolerância ou preconceito (homofobia, xenofobia, antissemitismo, racismo). Esses crimes podem ser denunciados pelo site da Policia Federal, pelo número 156 ou pelo e-mail:denuncia.ddh@dpf.gov.br.

Gilberto Junior

Uma viagem para se lembrar de 'cor'

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