Porta de Vidro
Seis horas da manhã na pacata Miguel Pereira. Enquanto grande parte dos cerca de 25 mil moradores da cidade do interior Fluminense ainda dormem, Antônio Carlos de Souza, 56, já está de pé para pegar duas conduções para o trabalho em Queimados, na Baixada Fluminense. São cerca de 60km de distância: 40 minutos de ônibus que desce a serra até Japeri e mais 25 minutos de trem até chegar à prefeitura onde trabalha.
A rotina pesada e o cansaço deixam marcas no corpo de Antônio Carlos, entretanto, nada se compara às marcas que ele carrega do preconceito. A pele negra já o fez diversas vezes vítima de distinção. Tonico, como é carinhosamente chamado pelos mais próximos, conta que no transporte para o trabalho foi corriqueiramente alvo de revistas agressivas dos policiais que faziam Blitz, padrão que segundo ele não se repete a todos os passageiros.
- Quase sempre que a polícia parava o ônibus vinham me revistar. Não acho isso errado, pelo contrário, mas o que me intriga era quando estava acompanhado de amigos brancos, por exemplo. A polícia vinha até nós, mas apenas eu era abordado. As pessoas que andavam comigo podiam estar portando algo ilícito e eram raras as vezes que também eram revistados. Depois de certo tempo fazendo o trajeto fiquei mais conhecido e hoje em dia quase não me param mais.
Fora os casos explícitos de discriminação racial, Souza também carrega algumas questões internas. Ao viajar ou visitar um local público, por exemplo, ele se preocupa em analisar o ambiente. A ausência de pessoas negras em locais voltados para a classe média é sentida por ele. “É horrível quando vou a um restaurante, por exemplo, é só encontro pessoas brancas. É difícil se acostumar com isso, me sinto deslocado, desconfortável”, revela.
A segregação racial, entretanto, não é uma exclusividade do Brasil. Antonio Carlos conta que em uma viagem para a Argentina sofreu com casos de preconceito. Desde a chegada no aeroporto, na passagem pele Free Shop sob os olhares de desconfiança dos funcionários do caixa, até a estadia na capital do país, Souza viveu alguns dias conturbados em um momento que deveria ser de lazer.
- Um dia estava andando com minha esposa por Buenos Aires, passando sob alguns prédios residenciais, quando jogaram de uma varanda um saco plástico com um liquido que parecia urina. Fiquei tão assustado e chocado que no momento não tive uma reação. Gostaria de acreditar que não tenha sido verdade, que não fosse urina e eu estivesse enganado. Quase não passei por negros na Argentina. Me impressionei por ser um país da América do Sul – lembra Souza.
Mesmo trabalhando longe, Antônio Carlos não pretende se mudar da pequena cidade de Miguel Pereira. O município, que fica a 120 quilômetros do Rio de Janeiro e tem 700 metros de altitude guarda peculiaridades que vão além do clima serrano. Nascido e criado por lá, Tonico afirma que a proximidade entre os moradores independentemente da classe social é uma das características que mais o agrada na região.
A afinidade entre habitantes é um traço comum em cidades pequenas. Para Souza esse aspecto contribui para um cenário com menos preconceitos. “Aqui, muitas pessoas pertencem a uma mesma família, são próximos. E mesmo aqueles com quem não temos tanta afinidade são conhecidos de vista. Acredito que essa familiaridade entre as pessoas contribui para uma cidade com menos preconceitos. Pelo menos aqui isso não é tão latente”, garante Antônio Carlos.
Souza pensa que as características do interior não são uma regra no Brasil. Ele acredita em um futuro melhor, mesmo que sua geração não faça parte dessa realidade. “Não acredito numa mudança a curto ou médio prazo. Estamos melhorando, mas longe do ideal. Acho que podemos viver num mundo melhor. Já tenho 56 anos, talvez não faça parte dessas mudanças, mas as gerações futuras terão um cenário melhor do que o que eu vivi.”
A rotina de um negro na América do Sul
Gabriel Thomaz